Na avenida da minha vida, componho e compartilho a ferro e flores de todas as emoções, inquietações e explosões de uma jornada profunda, intensa e fascinante.
Seja Bem vindo!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A Reforma

Eu sei que a culpa foi minha. Eu gostaria de ter me apaixonado pelo apartamento novo lá no centro na Duque de Caxias, mas eu sou daquele tipo de pessoa que não resiste a uma tentação de se aventurar.
Os americanos tem uma obsessão enorme pelo descartável, não imaginam o que estão perdendo. Como explicar o prazer que sentimos ao fazer rejuvenescer velhos objetos -- da banqueta da copa, à cúpula do abajur, surpreendente depois de pintada de branco. Ou a cama mudada de lugar e trocado os pés, o guarda-roupas antigo que resistiu a um casamento desfeito, após uma mão de tinta?
Esse sentimento tem a ver com anseios escondidos dentro da gente, sei lá. Analisar emoções adormecidas, resgatar sentimentos em desuso, adequar antigas percepções a novas situações. Não dá para jogar no lixo o que se foi ou sentiu -- o que dá é para organizar as gavetas, analisar seu conteúdo, jogar fora o que não serve mais e buscar uma nova ordem para o que permaneceu.
Enfim, o apartamento poderia ficar perfeito... trocando-se os armários de lugar, encanamentos, colocando uma pia onde era um guarda-roupas, acrescentando-lhe um pequeno escritório. Sim, é obvio, implicava em derrubar uma ou duas paredes e invadir uma sala que já me pertencia, mas me foi tomada. A copa, virou sala, para tornar o apartamento apto a acomodar as meninas e finalmente a mesa de granito (é mais barato) mandada fazer sob encomenda para cozinha. Coisinhas simples.
Erro Mortal: subestimar o tamanho da obra, do preço e dos prazos. Tenho uma amiga que, por conta de sua reforma, deve estar endividada por uns dois anos. Mais um pouquinho, e empata com a construção da Torre Eiffel, em Paris, que ela quer tanto conhecer, aquele colosso de 300 metros de altura e 9 mil toneladas de peso, que levou exatos dois anos, dois meses e nove dias para ser erguida -- e olhe que com tecnologia do final do século passado!
Os pedreiros eu culpo, em parte, por esse engano; assim como os médicos nos contam apenas meias verdades sobre a extensão da operação que estamos prestes a fazer. Tudo será muito tranqüilo, rápido, simples e indolor, com um resultado final sensacional. Quem não faria?
Além disso, nada contra os pedreiros. O Sr. Adeli, pelo menos, é uma pessoa adorável. Chegou lá em casa, olhou o apartamento em alguns minutos e, diante dos meus olhos assustados, foi despejando idéias fantásticas. Uma viga que não podia ser derrubada aumentou a pia da cozinha, um móvel colocado no canto morto do corredor, um deslocamento mínimo de paredes e eis que a pequena ganha um lugar para dormir.
Gostei do seu ar triste de gente que corre e trabalha além da conta, e trabalha não sei em quantas obras, e não tem tempo nem para consertar os óculos, colados com fita crepe. Fechamos o negócio no mesmo instante.
Três semanas depois, meu pobre apartamento lembrava Beirute em pleno bombardeio. Três homens, manejando maquitas, furadeiras e marretas com uma fúria incontrolável, destruíram o que quer que houvesse no caminho, e, enquanto montanhas de entulho iam enchendo a sala, que já não era mais minha, aliás nunca foi... O meu telefone tocou freneticamente. A vizinha do 724, uma jovem que mora com o namorado, com enxaqueca crônica, implorava pelo fim dos estrondos. O vizinho de baixo acordou com água pingando na cabeça, por conta de um cano arrancado com a violência de quem extirpa um câncer. A mãe do bebê do 726 me responsabilizava pela crise de bronquite da criança, causada pela poeira.
Ah, muita coisa agente aprende numa reforma! Sabia que, quando se altera a posição de uma pia de cozinha há de se fazer novos furos na viga? (óbvio, tudo muda de lugar!), o que exige a aprovação de dois terços dos condôminos, já que a viga é um bem comum do edifício. A sindica me mostrou, vitoriosa, a legislação.
Mais tarde quando cheguei em casa eu dei razão ao vizinho de baixo, ele estava cheio de razão. Eu mataria quem abrisse dois rombos no teto do meu banheiro, inutilizando-o para uso, e sumisse. Foi exatamente o que fez o encanador. Seu Adeli, sem conseguir explicar o desaparecimento do homem nem a compra de material abusiva que vinha fazendo, acabou indo embora rapidamente, antes que eu sacasse uma arma.
Ele me prometeu tranqüilidade, chegou afirmando que sua palavra valia por um contrato e pediu metade do preço dos outros.
Admito que até certo ponto ele não me enganou tanto. Rápido como um raio (enquanto eu lhe devia dinheiro), trabalhou duro. Difícil foi fazê-lo voltar, depois de receber uma parte do combinado.
Bom, estou em fase final, ainda falta a pintura que vai ficar para o mês que vem. Fiquei feliz com meu pequeno escritório, minha mesa nova de granito e a nova sala vazia, não quero mais procurar culpados. Culpada fui eu, que não me apaixonei por outra avenida e nem pelo apartamento novo lá da Duque de Caxias.

Um comentário:

  1. Muito bom!
    Pior que reforma é assim mesmo. Dei muita risada.

    Bom final de obra!
    Um beijão, Linda.

    ResponderExcluir